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FELIZ ANIVERSÁRIO - parte um

 


 


 

 Quarta-feira, treze de janeiro de 1971.

 

Duas da manhã.

 

Na porta da boate Flórida, Anderson aguarda Cleide sair de mais uma noite de trabalho duro. Dentro do fusca 69, ele olha o relógio de cinco em cinco minutos, e acende um cigarro após outro.

 

Quatro da manhã.

 

Cleide bate no vidro e acorda Anderson que, vencido pelo cansaço, dormia no desconfortável banco do carro.

 

Seis da manhã.

 

Cleide e Anderson estão deitados na cama da quitinete em que o rapaz alugara para sexo sem compromisso.  Ela tenta abraçá-lo, ele a afasta.

– Que foi amor? Não gostou?

Anderson senta-se dando de costas para Cleide e acende um cigarro. A moça o beija no ombro. Ele se afasta ainda mais.

– O que está acontecendo, Anderson?

– Acho melhor a gente dar um tempo.

– Como assim?

– Minha noiva está desconfiada, eu não quero arriscar meu noivado por bobagem.

– Bobagem? Então agora sou uma bobagem? Você falou que me queria para sempre.

– Nunca disse isso.

– Disse sim, quando pediu para gozar dentro.

– Deve ter sido no calor da trepada.

– Desgraçado!

– Para de drama.

– Escroto, filho da puta! – xinga socando Anderson.  Ele se vira e a joga no chão.

Levanta e se veste logo, para de drama.

– Você é um canalha, nunca deixei nenhum macho gozar dentro de mim.

– Achou o que, que eu ia me casar com você? – pega as roupas de Cleide e joga sobre ela. – Se veste logo, bora! Vou te deixar naquele cortiço que se esconde.

– Vai se fuder, porra! – Ela chora tapando os seios. Anderson sai do quarto batendo a porta, Cleide fica sentada no chão.

 

Sexta-feira, treze de agosto de 1971.

 

Nove da manhã.

 

Cleide segura a barriga que pesa sete meses de gravidez. Aguarda Anderson na porta do prédio em que o rapaz trabalha.

Anderson desce da lotação, ao se deparar com Cleide a pega pelo braço, e antes que fale alguma coisa à empurra para dentro de um táxi parado. Cleide se senta em cima de um boneco feito com cabelo de milho que foi esquecido no veículo. Anderson olha a sua volta e entra batendo a porta.

– Por favor, siga em frente.

– Para onde vai me levar?

– Ficou louca? Está querendo cagar com minha vida, Cleide?

– Estou grávida.

– É mesmo? Nem havia percebido.

– Sete meses, Anderson.

– E o que eu tenho com isso?

– Como assim? É seu.

– Ora, desde quando filho de puta tem pai?

– Pare o carro!

– Cala a boca, puta do caralho.

– Ele é seu, foi naquele dia que você pediu para gozar dentro...

– Essa porra não é problema meu.

– Já não é mais porra.

– Não quero saber. Pare o carro, por favor, motorista.

O taxista para o carro. Anderson pega uma nota na carteira, dá ao taxista e pede para deixá-la onde quiser.

– Vai ser assim mesmo?

– Vai, Cleide, vai ser assim mesmo. – Responde Anderson que segura Cleide pelo pescoço. – Se você aparecer na porta do meu trabalho novamente, eu acabo com você.

– O que faço com nosso filho?

– Nosso? Ele é seu. Faça o que quiser.

Anderson sai do taxi batendo a porta deixando Cleide com a resposta engasgada na garganta.

– Para onde quer que eu a leve, senhora? – pergunta o taxista.

O boneco embaixo de Cleide a incomoda, ela pega o boneco, sente um tremor no corpo, e a criança se revira em seu ventre. Em silêncio, olha para o taxista. Olha para Anderson na calçada, tomada de ira, ela sai do carro. Um Alfa Romeo 1960 a acerta em cheio, deixando-a esparramada no chão com fratura exposta nas duas pernas, mas agarrada ao boneco Cabelo de Milho.

 

Meio-dia.

 

Morro da Caveira, casa da parteira Zuleide.

 

– E então? – Pergunta Anderson apreensivo.

– Ela não resistiu. Os ferimentos foram muito graves, tinha que ter levado a menina para o hospital.

– Ela apareceu no meu trabalho, doida para me fuder, Zuleide.

– Parece que quem a fudeu foi você, e bem direitinho, né Anderson?

Anderson coça a cabeça, acende um cigarro, pega um pacote de dinheiro, entrega a Zuleide e vira as costas.

– Ei! Vai aonde? O que eu faço com o corpo?

– Enterra por aí, era puta, não tinha ninguém.

– E a criança?

– Fica com ele, dá para adoção, sei lá, não é meu mesmo.

Anderson sai do barraco. A criança chora embalada por Zuleide.

A mulher olha para o menino e logo lhe vem a ideia.

– Seu nome será Maicon, sempre quis ter um menino com esse nome.

 

Sexta-feira, treze de agosto de 2004.

 

Maicon está no barraco que mora com Zuleide. A mulher fez um bolo, nunca esquece a data, trata o rapaz como criança. Ele tira do bolso o boneco Cabelo de Milho e pergunta.

– Por que nunca me mostrou isso?

– Onde achou essa coisa? Pensei ter dado fim nesse maldito boneco.

– Estava na caixa da minha mãe. Podia ter me dado há muito tempo.

– Você não entende, essa coisa é amaldiçoada. Foi ele que matou sua mãe.

– Não pode tirar a responsabilidade do filho da puta que abandonou minha mãe, ou foi o boneco que me fez também? Que eu saiba bonecos não conseguem fuder com mulheres!

Zuleide pega o boneco e joga contra a parede com muita raiva.

– O que deu na senhora? Está com ciúme? – Maicon abraça Zuleide e lhe dá um beijo. – A senhora é minha mãezinha do coração.

Zuleide sente falta de ar, fica roxa.

– Que foi mãe? O que está sentindo?

Zuleide agarra-se em Maicon. O rapaz corre para buscar ajuda, e cai em uma cisterna vazia. O boneco pula na cisterna.

– FELIZ ANIVERSÁRIO, MAICON! – a voz grave sai do boneco.

 Gritos de Maicon pedindo socorro  misturam-se ao barulho de lâmina cortando carne.


Esse conto faz parte do livro




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